quarta-feira, 11 de março de 2015

A cidade da minha televisão



O som da comédia

Permitam-me começar, a sair. Vou ser breve. É uma história de cinema. Vão ver que faz sentido. Begin Again, a mais recente obra de John Carney (Once), oferece Nova Iorque ao som da canção. Utiliza esta para transformar a outra. A cidade como personagem, construída aos olhos de quem a ouve. Somos nós, nossos leitores, nossas playlists, nossos passos e encontrões que a redesenham num contínuo que nunca fecha. Nunca dorme. Os dois protagonistas andam perdidos pelas ruas, partilhando o som, através de um adaptador, e dividindo pela primeira vez a experiência. No final, sentam-se no passeio e ele desabafa: como a música tem o poder de transformar qualquer cena banal numa pérola. É a arte a roubar descaradamente os espaços e a dar-lhe novos contornos. Furtar à vista de todos Nova Iorque, erguê-la à sua medida. Assim a música, e nossos dias. Assim a comédia, e os mesmos nossos e os mesmos dias. Em concreto a grande maçã no pequeno ecrã. A rimar e a concluir com esperado sucesso este raciocínio, que sim reconhece uma enorme variedade de abordagens, mas que não, não encontra outra casa como o riso.

O mar é infindável quando procuramos séries televisivas ambientadas em Nova Iorque, de cabeça ou de teclado. A lista é gorda a cada década que passa. E são claras as sirenes. O policial que aproveita o cinzento para dele descobrir seus casos. Usando nalguns casos, descaradamente o N e o Y como bandeira. NYPD Blue (1993) e CSI: NY (2004) por exemplo. A primeira correu durante doze anos e terminou pouco depois da segunda arrancar. Que por sua vez lá se esticou em nove temporadas. Não existiam nelas dúvidas da sua presença. É ali, gritavam no genérico, nas cores e no tempo, para que fosse impossível pensar na fuga. Movimentos rápidos da pistola à procura do suspeito rimavam com os acelerados desvios da câmara. As sequências aéreas de magnitude que depois se fechavam nos apertados becos chuvosos. Castle, Rescue Me, Law & Order, Elementary, Person of Interest, Without a Trace, Blue Bloods. É difícil descolar com tamanha imposição azul, com a força de intervenção, mas estamos em última instância a falar mais na forma. Não tanto nos vasos sanguíneos. Na incorporação das ruas nas veias, do metro nas artérias. Isso galopamos num único sentido, o da comédia.

Quem és tu miúda?

Broad City foi uma das grandes revelações de 2014, presente em qualquer top que se preze, armando ou não os cucos. Revelação, pequena maravilha, hilariante, os adjetivos seguiam em fila indiana, servindo pois para alertar os mais despistados. A série criada e protagonizada por Ilana Glazer e Abbi Jacobson, e produzida por Amy Poehler, estreou no início desse ano no Comedy Central, e dá continuidade à websérie de mesmo nome que arrancou em 2009. Duas amigas, nos seus vinte e tais, em Nova Iorque. É esta a premissa. Minto, é um bocadinho mais citadina: comédia estranha sobre um casal de gajas (broads), melhores amigas, que passeiam os seus vinte anos em Nova Iorque. Falidas e falhadas, não dizem não às situações complicadas que a cidade lhes impõe. Cidade de gaja, cidade das gajas, é por aí, resume bem a situação. E a especificidade necessária para que exista de facto tudo dentro deste enorme nada, natural e realista. O cenário passa a motor essencial, não só na sinopse e título mas na verdadeira orgânica narrativa. É o terceiro elemento, tão vivo e esperto como todos os outros, a colidir incessantemente nas peças que se deslocam baralhadas, e azaradas. Tão ou mais importante que a carne e osso. É que feitas as contas é a sua magnitude e diversidade que tornam possíveis as situações, relações, e consequentemente as características das personagens. Um lugar de tudo e de todos cria usualmente os habitantes insensíveis, sarcásticos, cáusticos, perdidos e sem horizontes. Exatamente o oposto do sonho americano, de lá tudo ser possível. Exatamente o oposto da abordagem trinto-quarentona de Sex and the City. Onde as quatro amigas passeiam os seus sapatos de salto alto e o seu sucesso, pelas ruas bem mais ficcionadas e coloridas. Saímos do realismo para o consumismo, porém sem nunca sair de lá. É outra vertente, bem mais apelativa a um estilo de vida, ou só ao estilo. À emancipação feminina na forma de notas, carreiras e encontros amorosos. Muitos encontros amorosos. Nova Iorque possibilita o acaso, o anonimato, e as relações em catadupa. A libertação e liberalização do sexo, girl power, como gritavam as Spice Girls. A série da HBO e sua febre já todos nós provámos: seis temporadas, dois filmes e uma série prequela (The Carrie Diaries). Também todos nos lembramos das ousadas cenas de sexo do quarteto, umas com mais sexo que outras, mas todas a despir e a marcar uma época. À imagem da mais recente aventura feminina do mesmo canal Girls, que viu recentemente um dos seus episódios causar pesada polémica. O número um da quarta temporada ofereceu uma arrojada cena de sexo anal/oral que deixou todos a falar. Longe demais ou na mouche (sem segundas intenções) foram as ondas que se seguiram caindo na areia, sobre o momento protagonizado por Allison Williams e Ebon Moss-Bachrach. A série de Lena Dunham sempre foi desenvergonhada no que toca à nudez, sexo, linguagem. Como a casa a mãe, alvo de um delicioso vídeo satírico que terminava com a frase “it´s not porn, it´s HBO”. Quatro amigas, a tentar a sorte na cidade grande. Parecido no número a Sex and the City e idêntico nos dilemas geracionais a Broad City, Girls acrescenta algo mais à interface rapariga-cidade. Sai do assumido campo da comédia e mistura-o com o dissimulado campo do drama. A comédia da vida, que às vezes não tem piada nenhuma, atirando para o fundo uma série de ambições e vontades. Passeando mesmo na lama. Constatando demasiado cedo os falhanços e a reação ausente aos mesmos, deixar andar, no dia-a-dia. Egoísmo do grande anonimato mas também os sonhos, a dicotomia campo-cidade, deixar tudo para amadurecer. Como uma velha canção, é a bofetada mais acertada, não apenas sobre raparigas, mas sobre todo um conjunto de seres humanos procurando desesperadamente algum significado.

Amigos (da onça)

Friends será sempre rotina. Por muito que não se queira, onze anos depois a série continua presente. Nos espaços, nas conversas, nas deixas, nas televisões e eternas repetições. Até aqui, ou não tivesse a última Take dedicado acentuado parágrafo aos seis amigos. A propósito da longevidade da mesma, dez aninhos. Agora voltamos à carga, ou não fosse esta uma peripécia nova-iorquina. Muitos cenários, muito estúdio, mas os pequenos separadores levavam-nos automaticamente para a rua. Contexto, como o Washington Square Arch que lá nos indicava mudança de cena. Foi o início do rastilho. Uma abordagem mais ingénua e facilitista, que serviu de percursor aos murros que atualmente levamos. Evoluindo, para o real, como a própria comédia. Não deixa porém de ser o caótico vendaval que permite depois a figura do reencontro, naquele famoso apartamento ou café. Ou no bar, se saltarmos sem misericórdia para How I Met Your Mother, série que se despediu do público em 2014. Isto depois de uma promessa que demorou nove anos a ser cumprida. Uma resposta que foi sendo adiada, adiada, adiada, adiada, para bem da indústria, para mal dos fãs. É difícil manter frescura, mesmo com a cidade na mão. Apesar disso o gangue dos cinco criou momentos lendários, com as histórias dentro das histórias, sendo a aleatoriedade do movimento a funcionar como motor. É o coração do país, e da identidade cultural. Inúmeras as piadas a respeito da personagem canadiana (Robin) ou inúmeros locais icónicos a servir por sua vez de piada (a famosa manobra de Barney no topo do Empire State Building onde se aproximava de uma rapariga sozinha e com ar desesperado e proferia a frase: ele não vem). Uma estirpe de comédia que unificava cada uma das personagens, nas suas idiossincrasias e peculiaridades, que divertia mas que nunca aleijava. O lado melhor, mais ficcionado e artificial. Cheirava mais a cartão que a verdadeira, única e ácida. O grupo nova-iorquino que terá para sempre a estátua, o pódio, o prémio. Seinfeld, claro está. Não é por acaso que o canto do cisne os retira aos quatro da cidade grande e os coloca na cidade pequena. Numa vila, aldeia, noutro lugar, fora do aquário. E também não é por acaso que é lá que eles são presos e julgados, não apenas por não terem ajudado uma pessoa mas por tudo o que fizeram no passado. A lei do bom samaritano, foi essa que eles não respeitaram, que eles nem sabiam que existia. Porque as suas leis são outras: nova-iorquinas. Só a metrópole para produzir tamanho egoísmo, ou melhor, só a metrópole para trazer à tona tamanho umbigo. Porque para além de produzir, há o incomparável fator espelho que nos seduz, que nos envergonha e sinaliza. Somos assim de facto: pobres de espírito, mesquinhos, sovinas, maldizentes, ruins, podres. Mordazes, irónicos, críticos, críticos, críticos e críticos. Era essa a genialidade deste nada: recorrer ao enorme para concretizar o muito pequeno. Os locais, as peripécias, o saltitante sonoro, são conjunto que definiu não apenas uma década mas uma forma de ver e sentir a cidade. Cada um por sim, prenúncio do fim. No fundo o que Louie já percebeu há algum tempo: que a vida é uma cidade solitária, onde de vez em quando tentamos ter piada. 

Texto publicado na Take New York.

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